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sexta-feira, 31 de julho de 2009

Capítulo XIII – Neblina

Era domingo.
E naquela manhã, não houve realmente nada que me tirasse da cama. Nem a sensação de dejá-vù que me cercava.
Sentia-me totalmente esfacelada. Era como se tivesse dormindo dentro de um triturador de carne. Estava frio. Lembro de olhar no relógio e ver os ponteiros denunciarem as sete e meia da manhã.
A casa inteira dormia. Ou então se prostrava de olhos e coração fechados. Deitada em minha cama, podia imaginar o corredor claro, e uma neblina pousar sobre ele. Como um tipo de praga, um gás venenoso e mortífero.
Se eu olhasse com mais atenção para a porta fechada, com certeza veria a fumaça esbranquiçada entrar por baixo da madeira. Tinha medo de não conseguir controlar os pés e caminhar até ela, encher meus pulmões dela e finalmente fazer parar a dor.
Finalmente acabar com aquilo.
Ser vencida pela adulante e cruel covardia.
...
Cobri-me totalmente com o lençol. Ficaria jogada ali até que pudesse fugir pra algum outro lugar.
Quando eu tivesse vitalidade pra isso.
...
Três horas e quinze minutos depois, lá estava eu, pisando leve e saindo sorrateiramente pela porta dos fundos. Minha avó estava sentada na cozinha, mas tenho plena certeza que ela nem se deu conta de que eu passava bem ao seu lado, com a feição aflita.
Tinha medo de encontrar meu pai, e ser vítima de seus punhos outra vez.
Levar um empurrão violento de suas perturbações.
...
Poderia xingá-lo de cavalo, mas o que isso adiantaria?
...
Eu só queria escapar dali. Ficar sozinha e quieta em algum lugar aquecido do bairro da Vitória, bem escondida entre as ruas lamacentas da cidade de Serra do Campo.
Num andar hesitante e assustado, consegui chegar ao portão. Imaginei se meu pai me procurasse no quarto... Mesmo que aquilo pudesse ocasionar uma tragédia, estava quase convicta de que minha ausência não faria a mínima diferença para ele.
Agora éramos tão distantes...
Não fazia diferença alguma ficarmos afastados.
...
Dentro de meu casaco marrom, eu me encolhia e andava apressada, com a cabeça voltada para baixo e os olhos quase presos à terra batida do chão. Eu nem sabia para onde estava indo, só sabia que precisava estar longe o bastante dali.
Deles.
Pensei mudar o caminho e entrar em uma das trilhas do bosque, nos arredores da estrada de terra, mas não o fiz. Havia silêncio demais por entre as árvores.
Continuei meu percurso, muda e apreensiva.
...
Algo estalou levemente bem atrás de mim.
Eu logo pensei em correr e não esperar que me alcançasse.
Mas eu nem tive tempo para isso... Nem ousadia suficiente.
...
Permaneci alheia.
Era só um garotinho mirrado e franzino.
Andava devagar, mas olhava pra frente, sério e apático. Estava sem camisa, descalço, exibindo um peitoral magro e queimado de sol.
Sol?
Sim, sol.
Nossa! Mas estava tão frio...
Observei-o com o canto do olho, não disse uma só palavra, mas me perguntei se ele talvez precisasse de ajuda, quem sabe estivesse perdido ou precisasse de algo maior para se proteger das rajadas friorentas do vento.
Ouvi-o tossir.
Vi-o tropeçar.
Repensei...
...
Eu era realmente tão mesquinha a ponto de ignorá-lo?
Bem, eu não poderia ser.
...
Tentei manter um tom de voz amigável depois de tomar um pouco de coragem.
- Você tá perdido, é?
Por alguns segundos curtos, o menino olhou pra mim.
- Não...
Engoli a seco. Mas ainda não havia me dado por satisfeita.
- Não está com frio...?
O olhar que ele me lançou fora muito constrangedor. Pelo menos pra mim. Percebi o leve arquear de uma de suas sobrancelhas, seguida de uma furtiva idéia que bombeou em minha cabeça. O menino me olhava como se eu fosse uma louca. Eu parecia uma?
- Não estou com frio.
Fiquei calada. Mas como... Estava com certeza muito frio.
Imaginei que ele pudesse estar acanhado comigo, uma completa desconhecida errante sobre uma estrada inóspita. Talvez, se estivesse em seu lugar, também não conversasse muito com estranhos mexeriqueiros. Nem lhe confessasse estar congelando e abrir uma brecha para algum tipo de favor...
Mas bem, eu não tinha nenhuma má intenção.
Foi isso que me fez continuar as perguntas.
...
- Você mora por aqui?
Agora o menino estava exatamente ao meu lado, andando ao mesmo passo que eu. Ainda muito reservado e sério, não parecia assustado ou afoito. Por alguns segundos achei que estivesse me fazendo companhia e que todas as minhas suposições eram infundadas e sem noção lógica.
- Moro.
- Engraçado, – forcei um sorriso para ver se recebia outro – Não sabia que tinha vizinhos...
O menino não sorriu.
- Moro com minha mãe em uma cabana.
Tudo bem.
- É perto daqui?
O menino apontou com o dedo para o lado esquerdo da estrada de terra, perto de algumas castanheiras.
- Fica em uma clareira, para lá...
Assenti com a cabeça. Não sabia que morava gente naquelas bandas. Quis formular outra pergunta pra matar o tempo, mas estava difícil pensar com aquele vento gelado no rosto.
Calei.
...
Havia saído de casa a exatos vinte minutos. Foi só o que me veio na mente.
Depois já estávamos perto da rua principal, enquanto me perguntava para onde eu ia.
Uma mão me levaria ao lado populoso do Santos Dumont, onde havia prédios, casas e lojas de roupas caras; poderia achar um botequim aberto por lá e finalmente encher a cara, ou talvez pudesse ir visitar o museu e esquecer um pouco da atualidade que estava vivendo. A outra opção era seguir pela mão contrária, indo em direção ao bairro da Vitória, catar alguém paciente e enchê-lo com a história de que estava perdida e que não sabia voltar pra casa; quem sabe assim eu pudesse ganhar uma cama quente e um copo de leite, seguido de algumas promessas de que uma jovenzinha tão doce e meiga não ficaria sem lar por muito tempo.
Era só fazer uma cara de vítima.
Suspirei.
...
O que haveria de bom na Vitória?
Casas de tijolos cozidos e um cemitério cheio de más recordações.
Senti algo como um soco no estômago.
Parei e respirei.
...
Não. Qualquer outra coisa era melhor. Eu poderia caminhar pelo Santos Dumont e encontrar um lugar para enfim desabar com mais delicadeza, mas calma. Sim. Claro que sim.
...
O menino não disse mais nada. Parei no meio fio e esperei uma despedida singela.
Ia dizer até logo e virar as costas, antes que eu me sentisse bem mais infantil que ele. Porém, quando o disse e não ouvi resposta, tive o impulso de confessar meu nome e perguntar o dele, de supetão.
- Ah propósito, me chamo Amy... Qual é o seu nome?
O menino olhou para os carros que seguiam até o bairro da Vitória. Num balbucio sem vontade ouvi-o responder:
- Daniel.
Diria qualquer outra coisa, no curto intervalo de tempo em que baixei meus olhos. No entanto, foi engraçado e irônico não perceber que ele havia me dado as costas sem hesitação. Ainda mexi a boca para soltar uma palavra qualquer enquanto o via ir para longe, mas após me sentir uma idiota, me enfiei melhor no casaco e segui para o lado habitado do bairro em que morava.
Ao menos ele me dissera seu nome. Não precisávamos de mais nada.
...
Lá estava eu.
Feito uma barata tonta em uma rua pouco movimentada do Santos Dumont.
Onze em ponto.
Ainda confusa e precisando de um teto seguro.
Pra onde eu ia? Onde eu poderia respirar todo o fôlego que me sufocava?
Queria me acalmar e arregalar os olhos, apertar o meu coração e obrigá-lo a agir mais racionalmente. Sim!!
Mas até quando?
...
Meus olhos aflitos acharam uma porta aberta. Uma grande e chamativa porta escancarada.
Não enxerguei as poucas pessoas que andavam na calçada, só o que fiz foi obstinar os passos e entrar. Por entre os bancos vazios e polidos da gigantesca igreja, senti-me pequena e abraçada. Ainda perdi uns passos, estava tão mais à vontade pra gemer a agonia do meu peito... Era só fechar os olhos e deixar sair.
Mas não. Seria patético demais.
Esfreguei as mãos e procurei um lugar para me sentar.
...
Estava tudo muito vazio por lá, mas dava pra ouvir uma música baixa e sem muito timbre entoar ao fundo. Imaginei haver alguém na sacristia ou no confessionário, sei lá, algo do tipo. Fechei meus olhos e pedi que não me expulsassem dali com a desculpa de que a missa já terminara.
Respirei fundo...
Tinha os cabelos soltos, numa tentativa de esconder ambos os lados do rosto. Temia alguém perceber o meu hematoma, um dos que eu tinha gravados no corpo. Não. Eu não estava forte o suficiente para responder tais perguntas. Poderiam deixar-me um pouco em paz?
Eu responderia isso.
...
Baixei a cabeça e refleti praticamente nada.
Havia olhado pouco ao redor, mesmo notando a claridade no centro do altar. Pensei em fazer uma oração, ia até juntar as mãos e lamuriar alguma coisa, mas senti alguém passar por trás de mim.
Ah não...
Eu deveria me levantar e fugir?
Talvez. Mas não tive força pra me levantar. Seria melhor acabar comigo de uma vez por todas. Ali mesmo, se possível.
...
Fosse quem fosse, era morno. Podia sentir seu calor sentar-se bem ao lado.
“Droga! Tanto lugar pra sentar... Tinha que ser do meu lado?!”
Não me movi. Não respirei.
Mas ouvi nitidamente a voz baixa e calma do sujeito ao meu lado, próxima ao meu ouvido.
- Chegou atrasada pra missa.
Raios e trovões!
Eu conhecia aquela voz.
...
Justin não me fez levantar a cabeça ou dar qualquer tipo de sinal de vida.
Eu devia?
Nós tínhamos obrigações um com o outro?
Acho que não.
Continuei sem olhá-lo. Mesmo assim, tinha quase a certeza de haver um sorriso torto impresso em seus lábios.
Ele era assim.
...
- Que tal olhar pra mim...?
Pergunta importuna pra uma voz mansa.
- Que tal você ir embora? – respondi enquanto girava a cabeça e escorava um lado do rosto nas costas de um dos bancos. Ainda sem encará-lo, tentei achar oxigênio pra respirar.
Justin se calou por alguns segundos. Haveria se ofendido?
Não havia.
- Quero ficar aqui.
“Que ótimo”. Irônica.
Ele poderia rir de mim e ir embora. Convenhamos: era melhor e mais prático.
Suspirei alto.
- Como você me achou aqui?
Por incrível que pareça, ele ouviu o meu sibilar.
- Moro na casa em frente... Vi você entrar e...
E...
Eu já sabia o que vinha depois do E...
...
Ficamos em silêncio.
Não diria nada que pudesse me deixar constrangida ou mortalmente comprometida na cena seguinte. Depois que estivesse um pouco melhor.
...
Ergui o corpo e olhei reto. Não girei a cabeça nem por alguns centímetros para ver a expressão do rosto dele. Eu não queria criar absolutamente vínculo nenhum com aquele cara. Jamais.
Ia apertar os olhos quando senti sua mão tocar em meus cabelos. Tive um leve espasmo e o máximo que consegui fazer foi afastar-me, virar a minha cabeça para o outro lado.
Era tarde demais...
- Ele machucou você, não foi?
Quem era ele?
Pergunta tola. Eu sabia quem era.
- Percebi que seu pai estava estranho... Meio fora de si. Perguntei por você e ele me disse que você havia ido à escola... – Justin forçou um sorriso – era sábado, ninguém vai à escola no sábado... – Ficou pensativo – Aí vi você na janela...
Tudo começou a fazer sentido. Um vago e abstrato sentido.
Não soube o que responder. Achei melhor dizer o que pensara antes.
- Me deixe em paz.
- Isso é estar em paz?
Não me contive e olhei firme para seu rosto.
- Por que você foi à minha casa? Por quê está aqui fazendo parecer que realmente se importa? – quase falei alto. – Por que não pára de tentar jogar comigo?!
- Você já pensou na possibilidade de eu querer te ajudar?
Voltei meu rosto para frente novamente. Irritada.
- Não vejo motivos lógicos pra isso.
- Talvez não exista uma lógica. – percebi-o desviar os olhos furtivamente para o chão e soerguê-los com pressa.
Abanei a cabeça. Que papo furado. Que mer...
- Eu não tenho certeza de nada quanto a sua vida. Eu também não conheço você direito, mas... Sei que tem algo que não te deixa dormir à noite – Justin olhou certeiro para mim – que faz você sentir um muito, muito medo... Algo que tem machucado você... Foi isso que aconteceu com seu pai, não foi?
Não consegui evitar que meus olhos concordassem com ele. Meu rosto se apertava e eu tentava não começar a chorar.
Justin continuou:
- Deixe-me ajudá-la – ele chegou mais perto e quase sussurrou – Confie em mim...
...
Não imagino o que Justin faria após aquelas palavras. A única coisa que fiz foi me levantar num pulo e tomar o caminho da rua. Estava paralisada, confusa e angustiada.
Mais um pouco e...
E...?
Eu quase acreditaria nele. Eu quase saberia dizer que cheiro ele tinha.
Justin continuou sentado no banco vazio da solitária igreja. Sentia o seu olhar perfurar a minha nuca, e cruelmente me pregar um beijo na face machucada.
Um beijo doce e artificial. Um beijo de pena e consolo.
Um psicodélico jogo de mentiras e piadas particulares.
Era isso que ele insistia em tentar comigo?
...
A volta para casa foi sem surpresas.
Permaneci sozinha todo o caminho, pensando e buscando algum tipo de iluminação no meu juízo. Acreditava ou não? Era mentira ou verdade? Que outras chances eu teria?
Contra exatamente o quê eu lutava e apanhava?
Muitas vozes gritavam na minha cabeça. Todas assustadas, os meus ecos obscuros.
Após entrar escondida pela garagem e engolir as escadas com os pés leves e os olhos em alerta, me tranquei no quarto e esperei ver o dia ir embora.
Sem remédios...
Sem choro.
Vi o céu se escurecer e algumas estrelas lapidadas estacionarem entre as nuvens.
Tudo ia pra longe de mim enquanto eu continuava parada... Observando-me estática e entorpecida no canto do quarto.
Sugando a neblina que entrava por baixo da porta...
Num desesperador e irreal pesadelo.

2 comentários:

Hugo Castro disse...

Eu ainda não posso te dar nenhum conselho porque não tenho certeza de nada... Mas quando for tomar uma decisão, tenha certeza do que fazer...
Talvez te ajude ler um pouco sobre linguagens corporais; procure no Google.

Beijos ;D

Hugo Castro disse...

Oi^^
Agora eu li... D+ XD
Adorei a ideia da sombra; diria que vc se espirou no Shikamaru, + vc ñ assiste Naruto, né...
+ tah dahora^^
Bem assustador 0.-
Parabéns.
Bjs