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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Capítulo XVII – Mancha Negra

Não me lembro bem o que me acordou. Mas meus olhos estavam muito secos quando os abri. Eles ardiam. O céu estava escuro e o vento esvoaçava as cortinas perto da cabeceira da minha cama. Eu me sentei e ouvi o som de um carro chegando.

- Papai...
Queria olhar para ele, ser um pouco gentil. Mesmo que tivesse que sair do quarto, atravessar o corredor e descer. Minha Nossa! Aquilo me deixou em pânico!! Mas a pena... A culpa por sentir que o havia abandonado... Aquilo falou bem mais alto.
Corri para o banheiro e escovei os dentes. Dei umas leves batidinhas nas maçãs da face para me dar um ar mais saudável, molhei o rosto e tentei sorrir.
Que droga... Eu continuei horrível.
Vesti o casaco que deixara jogado no chão e parei, em frente à porta.
Péssima hora para desistir, era como se houvesse uma parte de mim do lado de fora. Ela me chamava, ela precisava de mim para sobreviver. E como eu, ela estava morrendo de medo também.
Respirei fundo e estreitei os olhos. Sem dar nenhum passo a mais, ergui a mão em direção à maçaneta...
As luzes começaram a piscar.
Eu olhei para o teto escuro, para as fluorescentes brancas e sólidas. Implorava para que não se apagassem.
Elas voltaram a piscar novamente, fazendo um tipo de zumbido não muito alto. Irritante.
...
Eu me mantive congelada. Queria me esconder em algum lugar, ligar para alguém e pedir que viesse até mim. Alguém para eu poder olhar e perguntar: “Você viu isso? Ó meu Deus, eu estou morrendo de medo!”
Mas não. Não havia ninguém lá. Ninguém confiável, quero dizer.
...
As luzes piscaram com mais força e rapidez logo em seguida. Apavorada, corri para o criado mudo e peguei o crucifixo, enrolando-o entre os dedos. Meus olhos pediam socorro, mas eu me mantive calada.
Poderia ser um simples problema na fiação da casa, uma queda de energia comum. Mas não... Exatamente não. Não era bobagem nenhuma acreditar que eram eles. Eles. Estariam com raiva por eu ter impedido sua entrada em meu quarto solitário?
...
Apertei a cruz com mais força, meus lábios se mexiam, mas não sei qual oração eu recitava. Só estava lá, falando, congelando.
Ainda de pé, eu olhava a porta, me perguntava se era uma boa idéia sair.
...
As luzes não se decidiram. Continuaram oscilando, ora me deixando no breu, ora me deixando no claro. De qualquer forma, não pude fazer nada. Estava de mãos atadas.
Olhei para a janela de vidro e pensei em como descer por ela.
Depois eu ia até o carro do meu pai, fazia ligação direta e fugia.
...
Fugia? Não, mas para onde?! Aquela era minha casa!!
Fiquei confusa, uma lágrima caiu de um dos meus olhos.
...
Abaixei a cabeça e apertei o rosto.
Uma batida violenta e desproporcionalmente alta soou em minha porta.
Não como a batida que ouvira durante a tarde, agora era realmente mais furiosa e obstinada. Dei um passo para trás e olhei para a madeira. Muda.
A batida se repetiu por cerca de três vezes, enquanto as luzes piscavam e eu tentava não desmaiar de pavor. Após limpar o suor nervoso que escorria por minha testa, ouvi a voz do meu pai do lado de fora.
- Amy... Amy abra a porta Amy...
Eu não respondi, mesmo que as palavras quisessem se atirar da minha boca. Tentei respirar calmamente.
Ele continuou.
- Filha...? Filha você tá aí? – sua voz quase ficou doce. – Ó meu Deus... O que está acontecendo comigo?... Por favor, abra a porta... Ajude-me!
Eu não me movi.
Forcei-me a ignorá-lo.
Ficou silêncio e a batida se fez no andar de baixo, mais precisamente na sala. Não sabia se era meu pai quem realmente pedia socorro, mas consegui caminhar para perto da porta. Queria ouvir ou imaginar o que estava acontecendo no corredor.
Escorei o ouvido na porta e esperei.
...
Havia algo resfolegado. Cansado e com cheiro de bolor. Fiquei ali por cerca de cinco segundos, até a batida violenta e furiosa me lançar para longe da porta.
- Amy! Abra a droga dessa porta!
Era uma voz grotesca.
Tapei a boca para não gritar ou acusar a minha presença, mesmo que fosse bem óbvio eu estar escondida dentro do quarto. Só sentia que não deveria fazer nada estúpido, tinha que esperar aquilo passar, esperar que esquecessem de mim e do sal.
Eles não entrariam...
Entrariam?
...
Justin logo chegaria. Sim, às sete e meia. Secaria os ponteiros do relógio com os olhos, enquanto eles giravam, abandonando aqueles intermináveis segundos. Que não iam.
Olhei para o relógio ao lado da cabeceira da cama... Sete e sete da noite.
Continuei olhando para os ponteiros, queria sentir que meu corpo despencava e que minhas pálpebras se abriam. Enfim, era tudo um terrível pesadelo. Eu estava saindo de um péssimo cochilo.
Não houve nada.
...
Eu ali, com os olhos transportados e maleáveis de tanto implorar, pude sentir o oxigênio ao meu redor cair e quebrar-se no chão. Tudo ficou temporariamente morto por quase um minuto. Não consegui respirar e nem me mover. Tentava gritar de uma vez por todas, mas não, não dava pra puxar fôlego. Era como se estivessem apertando os meus pulmões. Como se estivessem tapando a minha garganta.
Foi quando um arrepio quente me fez contrair os músculos. Um silvo inaudível saiu da minha boca e as minhas pupilas se dilataram. As luzes se mantiveram apagadas por completo, e a lua grande e lustrosa no céu negro iluminaram o quarto como um farol distante.
Era a hora da aurora.
...
Um sopro gelado e cortante soprou entre todos os cômodos da casa. Pude ouvir o seu flutuar fantasmagórico me procurar e gemer o meu nome. Me mantive imóvel, com os olhos na porta. Não. Eu não queria estar certa. Eles não entrariam.
Tudo era relativamente sombra, sem muita cor. Todo o papel de parede alaranjado havia desbotado. Sem mais som, o sopro alcançou o corredor, vindo de encontro à minha porta. À minha proteção.
Foi o meu nome e aquele sopro que sacudiram as partículas de sal, trazendo-as para dentro do quarto, por baixo da porta. Tudo que eu acreditava me deixar mais segura, havia acabado de ser expelido, sem esforço nem problemas. Os grãozinhos minúsculos foram se separando uns dos outros, formando uma desengonçada e esporádica marca branca no carpete.
Dispersa e inútil.
...
As luzes se acenderam com bastante força nesse momento, a do banheiro não suportou a alta carga de energia a acabou por estourar. Tomei um grande susto, girando o corpo para olhar a escuridão sobre os azulejos. Não me fizera ao menos o favor de ter mantido a porta do banheiro fechada.
Meus pés se mexiam num impulso de fuga, mas por eu não saber que tipo de ameaça maligna eu encontraria do lado de fora, segurei-me.
Tentei não tremer nem chorar.
...
Enfim, as lâmpadas voltaram ao normal. Não brilhavam mais num prenúncio de agonia, nem se afligiam em submersão às trevas. Tornaram-se luzes acesas e indiferentes, presas ao teto e ligadas em fiações antigas.
Permaneci na mesma posição. Olhando o escuro do banheiro, esperando que algum deles rastejasse para cima de mim.
A princípio, nada de extraordinário aconteceu. Pelo menos eu achei que não.
Mas aí, eu comecei a observar melhor...
A penumbra do banheiro se tornava mais densa. O escuro ia consumindo os fracos vestígios de claridade. Logo eu uni a sobrancelhas, vendo o escuro tomar a porta e escapar para as bordas das paredes, perto da escrivaninha.
Tapei a boca e fui em direção à porta. Enfrentaria o corredor.
...
As luzes começaram a oscilar novamente, enquanto eu tentava achar coragem para sair dali bem rápido. Olhei para a porta, ouvi o sopro e senti o cheiro horrível de bolor espreitar-me após a espessura da madeira. Não! Não dava pra ir por ali!!
Aí olhei para o banheiro... Incrivelmente, aquele tipo de mancha negra havia recoberto toda a extensão dos meus livros. Toda a parede do lado direito.
Mesmo quando as luzes clareavam, a escuridão se movia e se propagava como uma presença. Não se desfazia e nem parava.
Logo me alcançaria.
...
Estava totalmente cheia de medo, por um momento eu nem senti mais os dedos das mãos.
Meus pés formigavam e minhas pernas tremiam. Tive ímpeto de ficar parada e esperar o castigo, sem nem tentar uma negociação absurda. Porém, lembrei-me da janela e da grade de flores secas e espinhosas que se estendiam até o andar de baixo.
Minha mãe passou como um reflexo na minha cabeça. A lembrança dela sorrindo e arrumando as flores na grade me bateu com um tapa.
Era raro eu lembrar dela daquele jeito, com o rosto tão nitidamente bem desenhado e vivo.
Era diferente, bem diferente de quando eu olhei para sua palidez impressa na face, enquanto ela dormia apertada no estofado do caixão.
...
Nem tive tempo, quando dei por mim já estava correndo até a janela emperrada, forçando com toda as energias, implorando um leve ou brusco movimento de compreensão. Não deixaria de forçá-la, mesmo que a sombra me engolisse e acabasse comigo, eu ainda estaria agarrada ao trinco da janela.
A sombra vinha calma pelo papel de parede, engolindo as minhas fotografias sorridentes de uma família feliz, os porsters do Nirvana e do Linkin Park. E era como se dentro de seu fusco, houvesse um sorriso cruel e assassino, desejando faminto, consumir o meu medo. O carpete também ia desaparecendo, formando agora um lago negro e perigoso.
Eu não me afogaria nele.
...
Meus olhos com certeza gritavam, tanto que eu podia ouvi-los berrar dentro da minha cabeça. Se em algum momento eu precisei de força, o momento era aquele.
As pontas dos meus dedos doíam muito, mas se eu parasse de tentar abrir a janela, aí nem ao menos eu teria chances de ir embora dali. Claro que se eu conseguisse, havia a possibilidade de eu pisar em uma tábua podre e cair como um bloco de concreto, numa morte lenta ou numa contusão grave.
Não sei exatamente como eu conseguia manter os olhos abertos, estava em pânico, suando frio, mas ainda desperta.
Forcei mais um pouco, enquanto olhava a sombra há menos de um metro e meio dos meus sapatos. Já me preparava para a dor da captura quando subitamente, a janela se moveu para cima.
...
Os vidros embaçados e sujos de gordura ainda se recusaram mais um pouco, porém, não me detive e empurrei com mais força. Logo eu senti o vento fresco e gelado da noite tocar os meus cabelos, numa fresta não muito grande. Estiquei a perna e tentei me equilibrar nas telhas de barro, fazendo um terrível esforço para não cair em cima das pedras amontoadas bem embaixo da minha janela.
Olhei a madeira enegrecida da grade e me agachei. Segurei numa das telhas e desci o pé até achar algo sólido. A sombra já alcançava a janela.
Depois eu achei um ritmo para descer. Uma das ripas da grade rangeu, mas eu fui mais rápida e consegui passar por ela. Enquanto ofegava e tentava manter as mãos firmes, olhei para baixo e agradeci por faltar menos de dois metros.
Acho que quase sorri, se não fossem as lágrimas...
...
Enfim, dei um salto e caí em cima do barro, ao lado da pedreira.
Não sei se as minhas roupas se sujaram, pois quando mal toquei o chão, me lancei a correr para longe da casa. O portão estava aberto, passei por ele e alcancei a estrada de terra.
...
Estava tão apavorada que nem lembrei que havia um carro na garagem, muito menos que eu sabia fazer ligação direta e dar algumas marchas.
Aulas inúteis do verão passado.
...
As árvores eram um show explicito de terror. Bruxuleantes e negras, como monstros escusos no entardecer. O céu escuro, com a lua aprisionada a ele e algumas estrelas cintilantes, me atiçaram a não parar de correr. Eu estava apavorada, mal consegui raciocinar o que estava fazendo, tudo que por ventura surgisse na minha frente, seria atropelado e pisoteado por mim.
Algo uivou no meio do mato...
...
Não parei, acho até que aumentei a velocidade. Não imagino de onde eu tenha tirado tanta rapidez, afinal, eu sempre fui tão lerda! Mas estava indo, não sabia exatamente para onde...
...
Quanto mais eu avançava, mais o medo em mim aumentava. Tanto que eu mal pude notar o buraco no meio da estrada. Acabei enfiando o pé nele e despencando numa queda ridícula e dolorosa.
Não era um buraco grande, mas com certeza era fundo. Ainda com meu rosto colado na terra, mantive os olhos assustados e mariscados de choro. Se eles estivessem perto, conseguiriam me pegar sem problemas. Quis me encolher e esperar por eles, mas eu nem consegui me mover.
Foi uma respiração calma no meio-fio que me tirou da letargia.
Larguei meus olhos vencidos sobre a silhueta sentada e sem graça no canto da estrada. Quem quer que fosse, já me tinha em mãos. Eu acreditei que tinha.
...
Dois olhinhos pequenos não olharam para mim. Não com o medo que eu olhava para eles. Flutuaram até mim como uma pena.
- Você não deveria fugir.
Respirava ofegante, eufórica. Mal juntei as palavras, elas não fizeram sentido nenhum na minha cabeça. Depois os olhinhos se fixaram em mim e me fizeram tremer.
- A saída está perto de casa.
Aquilo me chutou e cuspiu em meu rosto. As palavras e a energia delas. Minhas mãos tremiam enquanto eu assanhava a terra com as pernas. Morrendo de pavor! Evitei gritar, se tivesse feito isso, acho que seria bem mais fácil me descobrirem. Eu só precisava continuar fugindo, fugindo!!
Continuei a fuga, agora tão alerta para a estrada e as folhas que se balançavam com vento, quanto um animal arisco. Meu peito estava apertado e os meus pés doíam. Aquelas sensações todas estavam soltas dentro de mim, sacudiam-se e queimavam o meu estômago.
Meus ouvidos estavam abafados e a minha cabeça doía.
...
Continuei me arrastando pelo meio da estrada, até ouvir alguém chamar minha atenção. Era uma voz fina e praguejante. Uma voz feminina. Como se me perseguisse, sentisse o meu cheiro e o meu medo. Podia senti-la olhar a minha nuca, puxar o meu cabelo e me esbofetear.
Apesar de olhar para trás e não ver ninguém, eu ainda sabia que aquela voz me espreitava. Sabia que estava a poucos passos atrás de mim. Foi estranho eu sentir tanto pavor, quis acreditar que era tudo uma alucinação violenta da minha cabeça.
De alguma forma, porém, tinha certeza de que ela já me conhecia. Sabia que a mulher que chamava o meu nome havia esperado tempo o bastante para me encher de pânico. Havia rondado todo o aquele tempo, escolhendo o momento perfeito para dar o bote.
...
Agora eu podia ver as luzes da rua principal, junto com as silhuetas mecânicas dos carros na penumbra. O meu coração badalava como um pêndulo desconcertado, eufórico e cheio de horror. Pulava e gritava, podia senti-lo doer e tremer. Os meus olhos tentavam achar consolo, algo que brilhasse e pudesse aquecê-los. Algo real e sóbrio.
Estava bem frio, mesmo eu estando dentro do casaco. O vento gelado furava as maçãs do meu rosto.
Meu estômago rodava.
...
Continuei correndo até mais perto da rua, pedindo que conseguisse ter energia para ir além dali, há algum lugar mais seguro e distante. Bobagem, porém, eu sabia. Estava fraca o bastante pra cair morta no asfalto. Poderia dar a eles uma honrosa vitória.
Nós a matamos.
...
Bem, ainda não.
...
Surgi no meio-fio da rua principal, vendo a noite iluminar-se com os postes amarelados e os carros apressados atiçarem uma brisa quente. Puxei as mangas do casaco e tentei olhar o caminho à minha frente. Tinha os olhos perdidos e a mente perturbada. Havia parado de correr tão bruscamente! Nem tomara um pouco de fôlego.
Ia para o lado populoso do Santos Dumont. Devia achar um lugar para organizar as idéias. Tentar achar uma solução temporária.
E talvez, quem sabe eu tivesse coragem de ir até a casa de Justin, olhar para ele implorar por ajuda.
Meu pai, minha avó, aquela casa... Tudo parecia latejar dentro do meu cérebro. Como eles estariam? Será que ainda respiravam?
...
Baixei os olhos e apressei os passos.
Meu corpo arrepiou-se tenebrosamente.
Uma mão gelada tocou o meu ombro
Aflita...
O quê?
Tentei deixar os olhos abertos, tentei continuar presa ao meu corpo.
Não olhei para trás.
Eu nem respirei.
...
...
...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Capítulo XVI - O sal na porta

Foi só o tempo de olhar ao redor. Os arbustos e o muro.

Adoraria ter um relógio para ver as horas. Mas não. Eu não tinha relógio algum.

Olhei para o céu e havia uma nuvem sem forma. Por entre o nublado cinzento e os raios do sol. Aquela náusea estridente me consumindo... Sem oportunidades de melhoras aparentes. Tentava achar uma maneira de simplificar todo o resto das coisas. Tudo de um jeito que pudessem caber no pouco tempo que nos restava.

Justin movimentou a cabeça para chamar minha atenção. Sabia que logo ele me engoliria com suas perguntas, bem depois que o deixasse satisfeito ou muito bem informado. Comecei a imaginar como ele poderia me ajudar. Como? Tirando a sensação de não estar totalmente largada e invisível no mundo, Justin não fazia grande coisa.

Era uma mão aberta, mas ainda sim um pouco vazia.

...

Eu resumiria as coisas.

- No dia seguinte meu pai não me esperou para tomar café. Eu estranhei, afinal, deveria ouvir um bom sermão. Mas não. Nada. À noite nós jantamos juntos, porém, a única coisa que ele me disse foi estar muito decepcionado comigo. – dei uma pausa, era como se eu estivesse vendo aquele rosto triste olhar para mim de novo. Me olhar sem aquela coisa ruim com a qual ele me enxergava agora. – Acho que essa foi a última vez que... Bom, que ele era ele mesmo. Na escola, a Natasha e a Karen me olhavam diferente, ficavam cochichando. A Natasha queria rir, mas a Karen não. Não nos primeiros dias. Como a Lucy estava de castigo, eu fiquei meio na minha, pra mãe dela não brigar mais com ela por estar na minha companhia. Fiquei observando as duas... Como eu não havia feito o que a Karen havia mandado no dia do cemitério, imaginei o que supostamente aquilo afetaria. Se afetaria. A principio eu me neguei a ir falar com ela, afinal, minha cara estava totalmente jogada no chão, arrastada na lama. Mas depois do primeiro pesadelo, eu acabei tomando coragem e fui. Cheguei dizendo oi. Elas riram de mim. Eu fiquei calada, só consegui falar depois de engolir minha vergonha a seco. Perguntei se Karen sabia o que havia acontecido naquela noite, depois perguntaria se eu havia estragado realmente tudo. Era só o tempo de manter um contato social secundário.

Justin estava sério e olhava concentrado para mim.

Prossegui:

- Ela foi bem direta. Disse que eu tava ferrada e simplesmente me deixou plantada no pátio da escola. Achei aquilo um desaforo, fiquei com raiva e também fui embora. Agora eu é que não queria mais pertencer àquele grupo. – uni as sobrancelhas. – ainda não estava com medo. Não totalmente. Só sabia que havia sido uma completa idiota. Grande perda de tempo sacrificar a confiança do meu pai naquela porcaria. – tentei não aumentar meu tom de voz – não levei a sério a resposta de que eu estava ferrada. Aliás, ferrada eu já era, pra mim as coisas não poderiam ficar pior. Eu achei que não poderiam... Bem, depois tudo ficou realmente estranho. Tive pesadelos horríveis nas duas semanas seguintes, acordava assustada e congelando no meio da noite. E sentia medo... Meu pai simplesmente parou de me dirigir a palavra, foi ficando distante, irritado... E os seus olhos mudaram também. A minha avó foi a única que continuou na mesma, mas ela é doente, esclerosada. Nunca me faria mal... eu acho. A maior parte do tempo eu esperava ser surpreendida por um rosto na penumbra do quarto. Um rosto e um grunhido de raiva. Foi quando eu deixei de apagar as luzes do meu quarto.

...

Me calei, com os olhos presos ao chão. Aquilo já não bastava? Agora ele poderia dizer que havia solução para tudo! Tudo! Ó meu Deus, eu ficaria tão grata a Justin!! Ele poderia acabar com tudo, eu me sentiria mais leve.

...

Ele não falou nada por cerca de dois minutos. E acho que esperava uma melhor resolução dos fatos, uma adequada e mais detalhada explicação. E não. Eu não havia sido muito boa. Sabia que não havia sido, mas esperaria uma pista dele para tentar melhorar. Ou então nada. Ele poderia aceitar aquele lixo. Justin poderia ser gentil.

- E quantas vezes o seu pai bateu em você...?

Quis sorrir. Ao menos não havia escutado um “Pode continuar, Amy”. Aquilo já não era suficiente. A pergunta com certeza caiu melhor. Melhor, eu só precisava respondê-la, depois eu me trancava de novo. De novo.

A agressão havia sido tão evidente?

- Uma. – imaginei o motivo de ele ter convicção ao perguntar.

- O seu rosto ficou bem machucado...

- Deu pra ver, foi? – me encolhi.

Justin se encurvou para achar os meus olhos:

- Eu percebi.

Assenti com a cabeça. “Alguém percebeu? Nossa, que estranho...” – pensei.

- Então é isso: você participou de um ritual e quebrou as regras?

- É...

- Depois vieram os pesadelos e o comportamento estranho do seu pai...?

- Isso.

Justin assentiu com a cabeça e falou, depois de pensar um pouco:

- Visões?

Demorei a entender.

- Visões? – repeti.

Ele juntou as mãos e explicou:

- Você voltou a ver os espíritos outra vez...? Tem tido algum tipo de alucinação?

Estreitei os olhos e apertei levemente os lábios. Confirmar aquilo me colocaria no posto de louca?

- É... Eu acho que sim... – virei-me para frente e passei a mão no cabelo. Constrangida.

Ele quase sorriu:

- Não precisa ficar com vergonha.

“Droga! Ele percebeu!”

- Não tô não... – eu realmente fiquei séria.

Justin deteve seu sorriso e desviou os olhos.

Sibilou:

- Teimosa.

Eu poderia me defender, mas com certeza eu ficaria ainda mais vermelha. Preferi fingir não ter ouvido nada.

Ele retomou o interrogatório:

- E como você tem dormido?

Eu diria que bem. Mas ele perguntaria como. E lá surgiriam os remédios. As pílulas avermelhadas.

Tentei escapar pela culatra:

- Tenho dormido.

- Bem ou mal?

- Isso importa?

- Eu perguntei primeiro.

- Custa responder a minha pergunta?

- Por que você não é educada e responde a minha?

- Tá bom, chega! – quase berrei – eu tomei uns calmantes pra dormir melhor! Pronto!

Justin ficou olhando para mim com os olhos meios arregalados e as sobrancelhas levemente arqueadas. Não. Eu não gostei daquele olhar.

- Mau sinal.

Ah, não! Ele poderia mentir e rir do meu papel ridículo! Por que me deixar com mais medo? Olhei para Justin com o rosto meio contorcido.

- O que significa “mau sinal”?

Ele respirou fundo. Desviou os olhos e fitou um arbusto seco perto do muro. Não... Sem contato visual. Isso sim era um mau sinal. Um péssimo sinal. Seria bem pior se eu me movimentasse para olhá-lo, para chamar a sua atenção. Como eu encontraria aqueles olhos? Talvez o susto ou o medo me deixassem completamente sufocada, com adrenalina demais percorrendo o meu corpo.

A única coisa que fiz foi abraçar o corpo e descansar os olhos nos meus sapatos. Sem girá-los nem deixá-los ficarem aflitos demais. Quieta, eu abrigaria a resposta que ele procurava maneiras de deturpar, até que ela ficasse ao menos leve. Ao menos suportável. Por que tantas formas de diminuição da dor? Ah, mas eu sabia... Sabia que não tinha estômago para tanto. No fundo eu desejava que ele a deixasse muito, muito leve para mim.

Eu não interferiria em seu silêncio.

...

- Você precisa parar de tomá-los.

A resposta me tirou de um tipo de sono. De olhos fechados e enrijecidos. Como? Bem como se dorme e não se sonha. Pensa-se. Entra nos próprios pensamentos, se enche deles até perceber que perdeu os sentidos.

Lancei meu olhar perdido até Justin, vendo-o franzi a testa e olhar na minha direção. Pediria para ele repetir a resposta, mas depois de ouvi-la se desenrolar em minha cabeça, consegui decodificá-la.

E ela não me deixou nem um pouco satisfeita.

- Por que isso é um mau sinal? – indaguei.

Ele respirou, não fundo, mas ainda pude ouvir o ar sair de seus pulmões. Esperei uma segunda e mais compensadora resposta. Uma coisa a qual eu pudesse olhar fixamente e aprender a domar. Fosse o que fosse.

- Eles só precisam de uma brecha... Uma fenda minúscula pra te derrubar. – Justin não desviou os olhos – Os remédios te deixam fraca e indefesa... Enganam os seus sentidos.

...

Aquilo foi suficiente. O bastante pra eu me manter calada enquanto o sinal da escola estrondava no pátio. Libertava os alunos. Vi-me levantar com os olhos caídos e os punhos amarrados a uma angústia morosa. Ela apertava, arrastando-se pesadamente entre as folhas dos arbustos. No meio de todos, eu ainda continuava presa e amuada.

Justin acompanhava os meus passos, alternando os olhos ora para mim, ora para o caminho ao portão. Ambos pensávamos em silêncio, mas nos mantínhamos ligados por um mesmo intuito. Precisávamos preparar as palavras, após aquele quase interminável julgamento.

Eu imaginava o quanto havia facilitado o meu declínio, olhando quase que de frente, a minha má conduta. Tão inconseqüente... Mas ainda percebia um rascunho de inocência na minha culpa. Havia me destruído, não por completo, apesar de contemplar os meus pedaços indo embora de mim.

Não me passa na cabeça o que Justin pensava. Não exatamente. Sabia que eu devia estar no meio, eu e os meus problemas. Dentro do azul dos seus olhos quase frios, soava como uma lamúria, o meu nome. Refletia-se transparente e assombreado a marca em meu pulso.

...

Não havia nada que eu pudesse falar. Claro que havia palavras vazias que eu poderia colocar para fora. Mas não. Eu não queria gastar energias naquela perda de tempo. Respirei e guardei fôlego. Segui o caminho de casa.

Ainda olhando para dentro de mim, em busca de alguma luz acesa, notei os passos de Justin ao meu lado. Foi quase que um susto senti-lo andar rastejante, como um suporte móvel e silencioso. Se eu caísse ou me jogasse do penhasco dos meus medos, com certeza ele estaria lá. Ou para observar a minha idiotice, ou para me abraçar e me levar a um lugar seguro.

O que as duas coisas tinha em comum?

As duas sobreviviam por pena.

Dó. Compaixão.

...

Já estávamos perto da estrada de terra quando tive o impulso de perguntar.

Hesitei, mas consegui:

- Por que você tá me acompanhando?

Não percebi alteração nenhuma em Justin, ele continuou com o mesmo humor de sempre.

- Primeiro: Por que aqui é um lugar perigoso. Segundo... – ele deu uma curta pausa – Preciso saber como exatamente te ajudar.

- Você ainda não faz idéia? – não pude evitar o nervoso em minha voz.

- Calma, calma... – Justin abrandou seu tom – Só não quero que nada pior aconteça.

Olhei para frente e continuei andando.

Esperei ser tomada de coragem novamente, para enfim sondá-lo.

- Mas você vai me ajudar, não vai?

Justin virou o pescoço, fitando-me com um sorriso torto e os olhos cheios:

- Claro que vou.

...

Os vinte minutos de caminhada pareceram dez segundos. Logo eu me vi em frente à minha casa, rente a varanda e a tinta descascada da fachada.

Parei e voltei-me para Justin. Enfiei as mãos nos bolsos do casaco e olhei para seu rosto. Pedia que ele me dissesse algo. Uma alternativa, uma saída. Continuei muda.

Ele olhou para mim, mas dessa vez havia chances acesas dentro dos seus olhos.

E sim, eles me deixaram mais calma.

- Faça exatamente o que eu disser...

...

...

...

Entrei em casa e respirei fundo. Justin já deveria estar passando do portão. Pensei em ir até a janela para olhá-lo, mas não. Eu nem tinha razão para tal coisa. Decidi cumprir seus pedidos, pegar um pouco de sal na cozinha, subir até meu quarto e jogar o sal na linha horizontal do chão, rente à minha porta, pelo lado de fora. Como ele havia dito.

Depois tomaria um demorado banho quente...

E quem sabe, se eu conseguisse, deitaria em minha cama para um longo cochilo.

À noite, mais precisamente às sete e meia, eu o esperaria. Ele e o plano; mais alternativas para desfazer as burradas por mim cometidas.

...

Logo eu achei a cozinha em silêncio. E a comida quente no fogão. Era o dia da Márcia fazer a faxina, com certeza ela deveria ter aprontado o almoço. Na geladeira também deveriam ter potinhos com os dias da semana escritos. Depois algum de nós terminava de preparar. Meu pai ou eu...

Peguei um pires e enchi de sal. Procuraria minha avó, mas seu quarto estava escuro demais. Preferi deixá-la em seu “sono”, sem mesmo ir até mais perto para fechar a porta e ocultar a penumbra dos meus olhos.

Subi para o andar de cima, fazendo uma silenciosa prece.

...

Neguei-me a aceitar a batida abafada na porta do sótão. Agora que eu parecia tão mais acomodada e segura, sem a dor no pulso ou o enjôo no estômago. Por que logo aquilo? Parei de súbito, mas não me mantive imóvel por mais de três segundos. Apressei os passos até a luz acesa no quarto no fim do corredor, lançando-me para dentro e trancando a porta.

Estava bem cansada, tanto que foi difícil conter a euforia do suor gelado que escorria da minha testa. Ainda olhei para a porta fechada por cerca de dois minutos, esperando ter um pingo de ousadia para abri-la novamente e jogar o sal no lugar dito por Justin.

Era tão complicado segurar as pontas sozinha... Mas de qualquer jeito, um dia eu teria que enfrentar aquilo. Eles.

Primeiro e respirei fundo e dei o primeiro passo. Foi um longo tempo até o segundo. Tentei pensar em algo que não combinasse com o medo, e tudo que surgiu na minha cabeça foi a lembrança de quando fui ao parque de diversões pela primeira vez.

Agachei-me, perto do tapete, tentando prender a sensação da lembrança em todas as farpas que se escondiam dentro de mim. Foi infinitamente trabalhoso me concentrar com o aumento das batidas no sótão e ainda mais tendo que deixar meus olhos abaixados, perto do sal e do chão. Era impossível obrigar-me a ficar calma.

Por fim, eu peguei um punhado de sal e saí jogando com leveza na extensão da porta, em horizontal. Justin me dissera que aquilo impediria os espíritos de passarem para a parte de dentro do meu quarto. Pela porta.

Ele não me indicaria nada. Nenhuma solução temporária. Só me mandaria ficar em alerta. Bem, mas depois que eu mostrei a ele a marca já quase transparente da mão de Sofia em meu antebraço, suas idéias germinaram com mais otimismo. Pude notar. Era “ruim” mas era “bom”...

“Faça exatamente o que eu disser...”

Justin explicou:

Ruim: era ruim pelo fato de eu tê-los fortalecido tanto, a ponto de criarem energia vital para quase conseguirem se materializar, podendo, assim, machucar-me se desejassem.

Bom: era bom por que agora seria mais difícil se esconderem, ou manterem-se perto demais com tanta energia. Se eu parasse de tomar os remédios, poderia cortar a fonte, deixá-los daquele jeito, sem mais nem menos força. A porta, mesmo trancada, era o meio mais fácil de entrarem e... Bom, você já sabe.

A chave de tudo eram os remédios. Tinha que deixá-los de lado. Eles já haviam feito o suficiente por mim...

Poderia também, só por mais precaução, colocar sal no rodapé de todo o quarto, assim teria uma maior proteção. Mas não, não daria certo... eles arrumariam um jeito de me atrapalhar.

...

Já havia colocado todo o sal. Foi quando algo rangeu, era o som de uma porta se abrindo.

Eu não fiquei para ver quem era, me joguei para dentro do quarto e tranquei a porta com pressa. Estava jogada no chão e ouvi algo chiar do lado de fora. Pensei em olhar pela fenda em baixo da porta, mas me contive e sentei-me da beira da cama.

...

Tomei um demorado banho, mergulhando meu corpo na banheira, dentro do calor dos sais e da água. Pensando... Aproveitando a segurança de poder deixar meus olhos fechados por pelo menos dois minutos em paz.

...

Sentei-me na beira da cama e meus olhos pesaram. Estava com muito sono. Foi só o tempo de me deitar e pensar mais um pouco... Não poderia dormir muito. Tinha que estar desperta para quando meu pai chegasse, devia olhar um pouco para ele e tentar protegê-lo também. Mesmo após a tentativa estranha de me envenenar. Mesmo depois de não reconhecê-lo. Sabia que ele ainda estava lá, perdido e assustado dentro de si mesmo. Inconsciente.

Justin me pediu para ficar de olho nele. Como eu, meu pai também poderia estar sendo vítima deles. E bom, eu devia ajudar como pudesse, ainda tendo que preservar a minha vida.

Fechei meus olhos, mas a luz do céu esbranquiçado não me permitiu descansar. Estava ofuscando-me. Cerrei as pálpebras e me levantei. Caminhei até as cortinas e de relance, olhei para o quintal na parte de baixo. Bem ao lado do puteal, era a figura de menininho sem camisa, olhando para minha janela.

Eu estranhei, olhei melhor e percebi que o conhecia. Era o Daniel.

Permaneci olhando para ele por quase vinte segundos. Depois algo bateu com força na porta do meu quarto. Foi quando redirecionei os olhos para a madeira enegrecida e esperei que o pior entrasse e me machucasse.

...

Não veio nada. A batida violenta na porta veio seguida de um silêncio agressivo. Mantive-me enrijecida e muda. Fechei os olhos e respirei fundo: “eles não podem entrar...”.

Voltei meus olhos novamente para o puteal na parte de baixo, tentaria manter algum tipo de contato com Daniel, pedir para que ele ficasse longe da minha casa, para sua própria segurança. No entanto, não o encontrei de primeira, meus reflexos que viram uma silhueta pequena e apressada entrando no meio dos arbustos, em direção ao bosque.

Fiquei na janela por mais tempo, ainda pensando...

“Ele estava fugindo? – Se estava, fugia de quê?.

Depois eu voltei para a cama. Deitei-me e pensei em Justin.

...

Como ele sabia aquelas coisas sobre o sal? Onde ele ia buscar ajuda durante toda aquela tarde?

Meu estômago roncou.

Fome.

Só me veio na cabeça, o gosto do suco de laranja.

O veneno.

Apertei os olhos e tentei dormir.

...

...


terça-feira, 1 de setembro de 2009

Breve......

Ki tal agumas mudanças???
^^

Acho que estamos chegando na reta final do diário.......
Eu desejo muito que todos que o acompanharam tenham gostado.
Agradeço a força dos meus amigos e das pessoas que me ajudaram a fazer isso ir pra frente.

AMO todos vcs!!!! ♥