O mundo tem dentes e pode te morder sempre que quiser....
Seja bem vindo

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Capítulo XV – Os fatos

Percebi que minhas mãos suavam e que minha boca ficava seca. Nada mais que a falta de palavras certas, mesmo que eu as tivesse todas presas à língua. Foi como se houvessem mexido no acelerador do meu coração... Ele agora se debatia, badalava frenético com os ponteiros desregulados. Uma onda de ácido viajou em minhas veias, todo o meu corpo congelou e paralisou rente àquele quase esquecido veneno.

Eu deveria mesmo respirar fundo, e pela primeira vez colocar aquelas coisas pra fora de mim. Mesmo que elas não tivessem forma concreta quando eu as dissesse ou que sua partida me devolvesse o sossego, tinha certeza que não conseguiria abrigá-las inofensivas dentro do meu ego.

Justin buscou o meu olhar, e era como se fosse a melhor forma de me encorajar a iniciar aquele tipo de tortura. “Ora, pois, é só uma dorzinha...” Odiava todas as formas hipócritas de diminuição da dor. Do medo.

Se era isso?... Enfim, era apenas isso. Sem enganações ultrajantes.

Devia me concentrar, e deixar os obstáculos do nervosismo um pouco de lado.

Um pouco.

...

Devia fazer sair o som. A minha voz.

...

Fechei os punhos por um segundo, logo depois os relaxei.

- Era uma sexta feira. Acordei as seis, fiz o café da manhã do meu pai, ele estava feliz, falava de umas possíveis férias do trabalho... A minha avó tomava chá na sala e ouvia a conversa. – furtei o olhar a Justin – Era sexta e também meu aniversário. – desviei os olhos. – eles não me disseram nada naquela manhã... Nem um ‘parabéns’ ou coisa do tipo. Eu me sentia péssima, claro, mas nunca me achei suficientemente à altura de exigir um tipo de coisa assim... Meu pai devia ter esquecido, lógico, era um dia tão cheio na clínica... E a minha avó...? Bem, ela é tão doente... Eu não me ofenderia mortalmente se caso o dia passasse em branco.

Justin não disse uma só palavra. Gostei do fato de não ser interrompida enquanto falava das coisas inúteis de um dia tão importante para a solução do problema. Foi bom olhar a paciência e a prudência flutuarem dentro daqueles olhos... Eles quase me deixaram vermelha.

Prossegui:

- Na escola não houve nada. Ninguém falou nada. – abanei a cabeça devagar – Nem a Lucy. Deveria desconfiar de alguma coisa, mas eu também não me lembrei disso, tinha tanta equação de matemática pra resolver! Depois eu passei o dia na casa da Lucy... A mãe dela não estava, aí a gente ficou por lá, sem ter o que fazer exatamente... – achei ter ficado realmente vermelha – Eram quase cinco e meia da tarde quando decidi voltar pra casa. A Lucy disse que ia comigo, pra pegar um livro de física, aí ficou me enchendo, me adulando pra irmos só depois da sete. Eu torci o nariz, mas acabei cedendo.

Justin mordeu discretamente o lábio inferior.

Continuei:

- Voltamos de táxi, já era noite. Minha casa estava escura, não havia uma só luz acesa em andar nenhum. Eu estranhei, fiquei parada do lado de fora, olhando pro andar de cima enquanto a Lucy pagava a corrida. Depois senti a mão dela tocar meu ombro e sua voz ficou assustada. Ela parecia amedrontada, disse que deveria ter acontecido alguma coisa ruim. – tomei fôlego – Primeiro eu fiquei rígida, não me movi. Só vi a Lucy dar o primeiro passo, dizendo que ia entrar e ver se estava tudo bem. Ela me pediu pra ficar lá e esperar algum sinal pra entrar depois também. Mal pude impedi-la... Quando dei por mim já estava sozinha, congelando no lado de fora. – Nos olhamos no mesmo instante, até eu desviar novamente os olhos de Justin – Fiquei lá, quieta, até que se passaram dez minutos e eu tive certeza de que alguma coisa ruim devia ter acontecido mesmo. A porta estava semi aberta, eu só empurrei com a mão e já estava do lado de dentro. A sala estava escura, não dava pra ver nada! Fiquei parada no vão da porta e respirei fundo. Depois eu chamei a Lucy e de repente as luzes acenderam...

Tinha falado tão baixo que pensei não ter sido ouvida por Justin.

- Todos gritaram “Surpresa!”. Depois do susto eu me dei conta da quantidade de gente e dos balões. Tinha também um bolo enorme na cozinha e uns cartazes coloridos em cima da janela. A Lucy veio me abraçar e me desejou feliz aniversário, pediu desculpas caso tivesse me assustado muito. Aí eu vi meu pai descendo as escadas e sorrindo pra mim. Ele chegou mais perto e me abraçou... – tentei manter os olhos firmes, para não se dissolverem em algum tipo de líquido – Me desejou felicidades. – funguei pra disfarçar. – Lembro que algumas outras pessoas se aproximaram, e ele gentilmente escorregou para longe, não queria que eu me sentisse constrangida. – sorri triste – Colocaram uma música alegre, vi alguns conhecidos da escola rindo e dançando... Parecia ser uma boa noite. Depois de cumprimentar os convidados, eu escapei para a parte da frente da casa e perguntei a Lucy quem tinha preparado tudo. Ela abriu um sorriso e disse que meu pai havia se empenhado muito para aquilo. Eu me senti contente, nem sabia que merecia tudo aquilo! Foi quando vimos dois faróis no meio da estrada de terra se aproximarem. Nos viramos e quase caímos duras de surpresa. Era o pajeiro preto da sua irmã...

Dei uma pausa e olhei para Justin. Ele continuava mudo e inexpressivo, a não ser pelo leve movimentar das sobrancelhas, o que me indicou ter prendido toda a atenção dele. Senti-me apta a prosseguir.

- Dava pra ouvir os risos de dentro do carro. Vi sair de lá Karen, David, Christofer, Naytan, Eric e a Natasha. Não vi você...

Justin soltou um tipo de gemido irritado, mas continuou indecifrável e silencioso.

- A Natasha chegou perto de mim e riu, perguntou quem era a aniversariante. Eu estava acanhada, não conseguia acreditar que as garotas mais populares da escola, com os caras mais populares e cobiçados estavam na minha festa! Consegui dizer que era eu. Ouvi uns risos de deboche, mas sabia que na frente deles eu não era muita coisa. O Eric perguntou se tinha comida na festa, eu disse que havia na cozinha. Eles entraram e nos deixaram sem mais palavras. A Lucy estava eufórica, nem acreditava que aquilo estava acontecendo! Ela pegou minhas mãos com aflição e agonia, dizendo que nós tínhamos que aproveitar aquela chance. Eu não soube o que responder, mesmo que também concordasse em tentar pertencer àquele grupo... Ficar popular, deixar de ser uma anônima monótona e desconhecida. – revirei os olhos com ironia – A Natasha estava lá, tinha que ser uma possibilidade, uma porta aberta para o “sucesso”. Fui tão idiota... – fiquei vermelha de novo – Nós entramos e tentamos nos enturmar com eles, mas só o que recebemos e vimos foram alguns risos zombeteiros e umas piadas sobre como tudo ali era sem graça. Meu pai se virava tentando servir toda aquela gente, eu nem me movi para ajudá-lo, achei que tinha coisas importantes pra fazer... – olhei para Justin em busca de respostas, afinal, estava falando da irmã dele, do “grupo” que ele pertencia; mas não houve sinal de irritação ou ofensa. – Já era quase onze e meia quando a Natasha se cansou de falar mal da festa e decidiu ir embora. Os amigos dela nos deram as costas e saíram. Eu ia ficar na minha, mas a Lucy me puxou para fora junto com ela, disse que não podíamos deixá-los ir daquele jeito. Eu fui, os encontramos já perto do carro. A Lucy chamou a Natasha e depois de muito gaguejar, perguntou se EU podia ir com eles também, afinal, era meu aniversário. – Me encolhi, constrangida. – Sua irmã buscou o olhar galhofeiro dos outros e ironicamente pediu desculpas, dizendo que eu não pertencia ao grupo dela. – fiz cara de raiva – “E como faço pra pertencer?” – havia usado estas mesmas palavras – Não sei de onde tirei coragem para dizer aquilo, quando vi já tinha falado. A Natasha riu e fez uma cara meio esnobe. Respondeu que pra pertencer ao grupo, eu devia passar por um teste. O Naytan riu e ela mandou ele calar a boca. A Karen olhou torto pra ele também. Caminhei para mais perto e disse que não tinha problema. Faria qualquer coisa.

- “- Qualquer coisa mesmo?” – Natasha pareceu mais perversa do que nunca. Por que eu simplesmente não desisti ao ver aquele olhar traiçoeiro? – repeti a resposta “Qualquer coisa”. Aí ela me puxou pra dentro do carro, a Lucy veio comigo, depois de eu muito implorar pra ela me acompanhar. Pronto: estávamos dentro do pajeiro, logo eu deixaria minha vidinha inútil pra trás. Alçaria um vôo mais alto! Saí de casa sem dar satisfação a ninguém, sem nem saber se eu voltaria. Confesso que jamais passou em minha cabeça que talvez eu estivesse prestes a fazer algo perigoso. Talvez fosse só um mico, uma coisa insignificante... – uni as sobrancelhas – foram cerca de quinze minutos dentro do carro. – evitei falar a Justin sobre o cheiro de cigarro no estofamento – Paramos, e Natasha me puxou pra fora, a Lucy veio à tira colo. Olhei melhor... Estávamos na frente do cemitério, no bairro da Vitória. Evitei estremecer, mas foi difícil. Perguntei o que faríamos, Natasha riu e disse que profanaríamos um túmulo. Os outros caras riram, vi um deles beijar a Karen e depois dar o primeiro passo até as grades. A Lucy olhou pra mim com um pouco de receio, mas por fim, todos pulamos a grade. Estávamos do lado de dentro. Achei que seríamos expulsos pelo vigia, mas Eric disse que não ficava ninguém por ali à noite. Passamos por algumas lápides, estava escuro mas consegui ver algumas inscrições. Uns nomes. Não sei por que motivos eu os li, acho que era uma forma de sentir menos medo. – quis rir, mas não consegui – David acendeu uma lanterna e focou na minha cara, perguntou se eu estava com medo. Depois de esfregar os olhos e recuperar a visão, respondi que não estava. Ele assentiu com a cabeça e focou o caminho à frente, sem mais palavras. Meu Deus, eu estava morrendo de medo! Tentei não tremer. Paramos por fim, bem nos fundos do cemitério. David iluminou dois túmulos grandes e acimentados ao fundo, ambas com estátuas de anjos armados. Na mesma posição, assustadores e infelizes. A Natasha chegou mais perto das lápides e começou a rir. Eu achei estranho ela não aparentar medo, comecei a temer uma coisa realmente ruim pra mim. Me encolhi e esperei ela dizer o que eu devia fazer, afinal, já havia chegado até ali, não podia desistir feito uma menina chorona. Foi quando o Eric mandou a Natasha se apressar, percebi que ele estava meio afoito com tudo aquilo. Ela olhou feio pra ele, mas não disse nada que o ofendesse. Tomou um ar superior e falou que havia mudado seus planos e que eu não profanaria mais túmulo nenhum... Agora eu teria que tentar conversar com os mortos...

Tentei respirar normalmente, mas foi difícil dizer aquilo sem me arrepiar.

Prossegui:

- Aquilo me deixou meio assustada, apavorada! Olhei para Lucy, mas ela não me encorajou a desistir, só o que fez foi assentir com um leve movimento de cabeça. Me senti obrigada a fazer aquilo, não havia como desistir, havia?! Aí comecei a dizer pra mim mesma que era apenas uma brincadeira idiota de colegial, que seria indolor, rápida e humilhante. Sem mais estragos. A Natasha fez cara de deboche e perguntou se eu ia desistir. Depois de engolir o meu medo, respondi que não. Ela fez uma cara séria e mandou que eu viesse para perto dos dois túmulos. Eu fui. Depois ela levantou o olhar para mim e falou que eu tentaria me comunicar com a mulher e a menina que estavam sepultadas nas duas lápides atrás de nós. Eu concordei com a cabeça, não tinha o que dizer. Estava tonta... Ela deu um sorriso torto e iniciou uma história...

Há quase vinte anos, havia uma família que morava nos fundos desse cemitério.

Um homem magro e pálido; uma mulher bonita e jovem; e uma menina de aproximadamente nove anos, alegre e cheia de vida. O homem chamava-se Ben. A mulher, Elisa. Sofia era o nome da garotinha.

Ben era o coveiro do cemitério.

Tinha o hábito de andar pelo meio dos túmulos à noite.

Todos diziam que ele era corajoso em fazer isso, mas ele não via aquilo como um ato de coragem.

Não dava medo nenhum, todos estavam mortos, como dizia ele.

Mas aí veio um dia...

Um dia em que ele começou a ficar irritado. Em que começou a ter pesadelos horríveis.

E a perder a paciência.

A família não entendia o que estava havendo. Ele era sempre tão manso...

Não se dera conta de que Ben havia se tornado um homem mal.

Gradativamente...

Cansado de suas frustrações.

Perturbado por algo que nem ele mesmo sabia dizer o que era.

Foi perdendo-se...

Foi indo... aos braços da loucura.

Foi quando veio aquela ânsia. Aquele desejo maldito... Como uma redenção solene.

A purificação dos pecados. A única forma de fazer parar aquelas vozes dentro da cabeça.

Formulou tudo...

Começou a cavar duas covas.

Até que chegou o dia.

Esperou que viesse a noite.

E ela veio.

...

Estrangulou a mulher que dormia ao seu lado.

Sufocou a filha com um travesseiro quando ela pensou em acordar.

Depois ele parou.

E as vozes também.

Estava livre!

...

Enterrou os corpos e fugiu.

Sem dizer aonde ia.

Se realmente ia.

Mas as pessoas logo descobriram tudo, e foi um choque terrível!

Uma revolta pública.

Sua mulher e filha... Ben devia estar louco!

...

Ninguém o viu por dois meses.

Até o dia em que algo começou a feder perto da casa de um comerciante.

Num lado afastado da cidade.

Algo podre.

Foram os olhos curiosos que acharam o corpo já morto...Transparente e gelado.

Alguns outros olhos ousaram acusar terem visto, sob a pele sem vida, marcas enraivecidas de mãos infantis. Pequenas e delicadas mãozinhas.

Um tipo de sinal.

Logo em seguida constataram os olhos... Ambos furados.

...

O homem mal parecia bruscamente castigado.

Torturado insistentemente até a própria morte.

Logo nasceu a idéia da vingança.

Haveria sido uma vertiginosa coincidência do destino? Ou então um acerto de contas?

A história da família ficou conhecida, virou uma espécie de lenda urbana da cidade.

A loucura, a vingança, e enfim, a maldição.

Haveriam de ter cuidado com isso agora.

Com a lembrança dos mortos. Com que se move em seus últimos sentimentos em vida.

...

Não se sabe a verdade, mas alguns dizem que Ben não teve enterro, que seu corpo foi jogado numa vala. Sem identificação e sem palavras bonitas.

Só um lugar para apodrecer e alcançar as portas do inferno.

...

...

Parei o olhei o rosto de Justin. Aflita... Sim, eu esperava alguma palavra, alguma outra voz para se sobrepor à minha. Fosse um xingamento ou um “por que você parou?!” Eu não me importava em ouvir desaforos.

Ele olhou para mim por dois segundos, até perceber e enfim tentar me deixar mais calma:

- Estamos indo bem, Amy.

Eu assenti com a cabeça. Mas não me sentia nem um pouco melhor. Não. Agora eu estava enjoada.

Coloquei os cabelos atrás das orelhas e retomei os fatos:

- Depois da história, eu fiquei meio em pânico. Eu pensei em correr, mas não dava... Não ia dar. Foi quando a Natasha chamou a Karen e perguntou se ela ainda sabia aqueles mantras. Um daqueles que evocavam os espíritos, que os chamava a um tipo de conversa. A Karen veio para mais perto e sorriu, dizendo que ainda sabia sim. Fiquei tentando imaginar quando ela aprendera aquelas coisas, aí me lembrei do tempo em que ela andava de preto com aquela galera soturna. Só poderia ter sido naquela época nefasta. As duas conversaram por algum tempo, meio afastadas de mim. Depois de ouvir alguns risinhos, elas enfim se aproximaram. A Natasha chegou mais perto e disse pra eu fazer tudo que a Karen mandasse. Eu tentei dizer que sim, mas só consegui assentir com a cabeça. A cópia da sua irmã estava bem perto de mim quando me dei conta. Daí a Karen começou a me explicar como iniciar o ritual...

Mordi o lábio inferior e tentei manter o mesmo tom de voz:

- Ela começou olhando bem firme pra mim. Fez aquilo parecer tão sério... Mantive o controle e prestei atenção ao que ela começou a falar... – cruzei as mãos na frente do corpo e prossegui – Foi super estranho ela dizer aquelas coisas pra mim. Sabe...? Eram umas palavras sem nexo, sem rima, sem forma! A Karen as disse apenas uma vez, mas mandou que eu as repetisse ininterruptamente, até o ritual chegar ao fim. De modo algum, eu não poderia parar de dizê-las um só segundo. Não entendi por que, mas não perguntei também. Aí ela me puxou pra mais perto dos túmulos e ficamos bem no meio dos dois. A Natasha me deu um giz e disse pra eu desenhar um pentagrama entre as lápides. Primeiro eu fiquei sem ação, eu nem sabia o que era pentagrama! A Karen deu um muxoxo e me explicou que era um símbolo que teríamos que usar. Consistia em um círculo com uma estrela dentro. Simples. Eu faria. Me agachei e tentei fazer minha mão parar de tremer! Depois de algumas tentativas de ficar calma, eu terminei o desenho. “Muito bom”, a Natasha falou. Me ergui e busquei o olhar da Lucy... Por incrível que pareça, ela desviou os olhos de mim e baixou a cabeça. Respirei fundo e ouvi a Karen dizer pra eu começar, bem do jeito que ela tinha me ensinado. Daí todo mundo se afastou, aglomerando-se ao meu redor, formaram uma roda. Foi horrível sentir o que eu estava sentindo, dava medo só de pensar em começar! Mas se eu não fizesse, passaria a ser maior piada da escola! Uma fracassada, uma medrosa! Fixei meus olhos no chão e busquei coragem. “Não temos tempo pra desistências... Duas perguntas e fim” A Natasha falou tão baixo... Ainda sim foi como se estivesse gritando! Busquei fôlego e comecei a falar as palavras do mantra. Gaguejando a principio, mas comecei. Sabia que havia vários pares de olhos sobre mim naquele instante, olhando-me de diversas formas, com diferentes intenções. Logo eu sentiria o arrepio dito por Karen e saberia que era a hora de dizer alguma coisa aos espíritos. Enquanto eu repetia as palavras, imaginava se conseguiria fazer sair a minha voz, se conseguiria abrir os olhos e olhar para elas, se nos deixassem vê-las... a menina e a mulher morta. Não sei exatamente por quantos minutos eu fiquei falando aquelas coisas estranhas, mas percebi que aos poucos ia esfriando. O ar tornava-se rarefeito e quase não dava pra respirar. Quis parar de falar e tomar fôlego, mas não podia, a Karen disse que eu não podia parar! Daí continuei. Não vendo a hora de tomar oxigênio. Apertei os olhos e prossegui. Ainda não havia acontecido nada inexplicável ou sobrenatural. As palavras iam saindo... Ficava frio. Até que me senti estranha. Estranha demais. Não parei de falar, até que houve um trovão e eu abri olhos, logo olhei para o céu e vi relampaguear, uma luz clara dentro uma lua nova e obscura. Ainda falava e olhava para o céu, apavorada, assustada! Foi quando senti aquilo... O arrepio! Daí um gemido de criança, de menina... Tomei um grande susto e olhei pra frente. Dava pra ver através dela, da menina!! Foi demais pra mim, foi a coisa mais louca e aberrante que eu já tinha visto! Não consegui dizer mais nada. Nada! Não saía mais nada da minha boca. Fiquei olhando aquilo, com os olhos arregalados. Daí a Karen começou a gritar dizendo que eu não devia ter parado, que eu tinha que retomar o mantra. Não dava pra entender nem pra recomeçar a dizer aquelas palavras de novo. Eu estava em pânico olhando para o meio das lápides, vendo a menina e mais alguma coisa sair detrás de uns arbustos. A Karen continuou berrando, depois foi a vez da Natasha perguntar gritando o que eu estava vendo. As duas estavam meio histéricas, não sei direito! Eu mal conseguia me mover, minhas pernas estavam adormecidas e meus ouvidos começavam a zumbir. Minha consciência me apunhalava com sermões curtos enquanto eu me perguntava o que eu tinha feito. Foi quando ouvi um tipo de grunhido. Horrível e furioso. Olhei melhor e percebi que vinha da menina! Vinha dela! Eu me agoniei e tentei ter forças pra fugir, mas nem ao menos tive chance. Ela veio pra cima de mim com muita raiva, mal eu me dei conta e já estava no chão, meio desacordada, com uma dor horrível no peito. Ainda virei minha cabeça para pedir ajuda, mas percebi que todos corriam para fora do cemitério. Eu estava sozinha! Achei que morreria sozinha! Depois eu apaguei. Desmaiei. Acho que foi o excesso de adrenalina, medo sei lá! Acordei duas horas depois, com a Lucy me abanando e as luzes do carro da polícia. Tinha também um velhinho com a cara feia. Com certeza, o vigia do cemitério. Estava meio tonta, perdida e não sabia dizer se fora um pesadelo ou um delírio... Ainda atordoada. A Lucy pegou na minha mão e disse que ia ficar tudo bem... Disse que não ia me deixar sozinha naquela. Eu tentei sorrir e saber o que significava “aquela”.

Parei pra respirar.

Retomei:

- A gente voltou pra casa no carro da polícia. Era quase três horas da manhã. Meu pai estava sentado na varanda quando viu as luzes vermelhas se aproximarem. Imagino que tenha pensando o pior deve ter se sentido péssimo. Aí paramos e saímos do carro. O policial falou pra ele a história da Lucy. Contou que havíamos entrado no cemitério sem permissão, invadido. Depois de ficarmos com medo, tentamos ir embora, mas eu acabei desmaiado. Só. Sem espíritos ou mantras. O policial olhou meio torto pra mim e disse ter havido uma brincadeira de criança sem danos mais graves. Meu pai ficou sério, cruzou os braços e me mandou entrar. Me despedi da Lucy e subi. Fiquei na janela do meu quarto vendo o policial ir embora com minha amiga. Com certeza ela também levaria uma bronca daquelas de sua mãe.

...

Depois me calei. Esses eram os fatos. Os fatos escondidos do início da história.

Esperei Justin explicar o plano e enfim me livrar de tudo aquilo. Havia sido difícil pra mim! Pronto, agora é só esticar a mão e me deixar apertá-la.

Ele olhou para mim por cerca de cinco segundos.

Indecifrável.

- Pode continuar, Amy.

“Continuar?” Pensei. “Eu não havia dito tudo?”.

Franzi a testa e perguntei:

- O resto é importante também?

Justin deve ter achado minha pergunta engraçada. Deu um sorriso torto e respondeu:

- É importante sim.

Assenti com a cabeça e pensei um pouco...

...

...

...

Próximo capítulo.

(=



quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Capítulo XIV – A última chance

Não sei se é possível, mas na manhã seguinte eu acordei bem pior.
Ao me levantar de cama, fui me olhar no espelho... Havia um rosto pálido com um par de olhos baços e um conjunto de veias finas e arroxeadas, num lindo hematoma.
A marca da mão em meu antebraço estava menos visível. Ao menos isso.
A do pulso estava ficando mais forte. Tentava não acreditar que sua estranha metamorfose continuava, e que ela passava da cor vermelha, para um cinza quase negro.
Não.
Respirei fundo e tentei balbuciar alguma coisa. Um palavrão, eu acho...
Não saiu nada. Se saiu eu realmente não ouvi.
...
O café da manhã também foi horrível. Tanto por que meu pai o fizera, quanto por que não trocara uma só palavra comigo. Tive medo de sair sem comer e assim deixá-lo de certa forma com raiva. Sentei-me encolhida na cadeira da cozinha e belisquei um pedaço de torrada. Sem encará-lo, sem respirar direito. Não via a hora de sair pra rua. Ficar longe.
...
Havia uma jarra com suco de laranja em cima da mesa da cozinha.
Obs: Eu odeio laranja.
Não ia tomar, mas meu pai serviu um copo e colocou ao lado das minhas torradas roídas. Lançou um olhar meio aflito-psicótico pra mim e virou-se para a pia.
Tremi os olhos. Tinha que tomar... Pelo menos temi não engolir aquilo e receber algum tipo de castigo.
Hesitante, peguei o copo e deu o primeiro gole.
...
Quis vomitar o que eu não havia comido.
O suco estava com um gosto horrível, meio azedo, meio doce enjoativo. Como água salobra, suja de lodo. Não pude cuspir, então precisei engoli aquilo. Mas só aquilo! Depois recoloquei o copo na mesa e fiz uma careta de nojo.
Meu pai veio para perto e falou com os olhos avermelhados:
- Tome seu suco.
Confesso um pequeno sobressalto.
Não respondi.
Por que ele estava daquele jeito? Por que eu tinha tanto medo do que ele podia fazer?
Meu pai.
Ele realmente queria que acontecesse aquilo?
...
Repensei por cerca de alguns segundos.
Para acabar logo com o medo que começava a sentir, deixei-me agir por impulso e engoli todo o liquido amarelo do copo.
Depois foi o tempo de o suco querer retornar a boca, mas aí eu o contive com a mão e o pensamento de que seria bem pior se eu vomitasse no carpete da cozinha.
Ainda tossi, tentando manter a garganta fechada. Meu pai não fez nada, só passou por trás de mim e subiu para o andar de cima.
...
Catei minha mochila sobre o sofá e saí sem dizer coisa alguma.
Qualquer palavra e...
...
O primeiro tempo de aula passou. Eu estava lá, ausente. Mumificada, ouvindo o caquético professor de história falar sobre não-lembro-o-quê-exatamente. Tinha muito barulho na sala, mas eu mal conseguia me mover! Tinha os olhos sempre estacionados em algum ponto morto, tentando realmente saber ou ter noção de alguma coisa.
Eu parecia uma idiota, perdida e parada.
Haveria respostas em algum daqueles lugares em que eu estava?
...
Sentada em uma carteira, bem no meio da sala. Foi num movimento leve do pescoço que vi Justin me olhar apreensivo.
Baixei a cabeça e cerrei as pálpebras.
...
Veio o terceiro tempo de aula. Aí um homem e uma mulher entraram na sala. O cara era alto, meio gordo, tinha a pele clara e era meio sério; andava com uma mochila estranha em suas costas. A mulher já era menor, com uns cabelos ruivos e uma pele de porcelana. Estava graciosamente dentro de um tailleur marrom.
Eles entraram, disseram ‘oi’ pra classe e foram falar com o professor. Ouvi o homem perguntar se aquela era a turma do terceiro ano, depois de o professor dizer que não, eles se retiraram, em passos leves e elegantes.
...
No intervalo, fugi da Lucy.
A vi subir as escadas e perguntar a uma menina se eu havia ido a escola naquele dia.
Depois de a tal menina assentir com a cabeça, corri e me esgueirei no corredor vazio que levava ao laboratório.
Lucy deveria ter ido até minha sala e me procurado com os olhos.
Sem me achar, lógico.
Mas bem, o que eu poderia oferecer a ela?
Não tínhamos nada em comum ou que pudéssemos partilhar naquele momento de nossas vidas. Os laços que formavam nossa amizade estavam bem comprometidos.
Ela nem ao menos acreditara em mim no dia em que contei sobre o que estava havendo comigo. Sobre as coisas estranhas na minha casa!
Depois daqueles olhos de suspeita e da legião de assuntos fúteis que Lucy me mostrara, achei bem melhor deixá-la de lado durante aquele tempo.
Era seguro e indolor.
...
Suava frio.
Eu estava definhando.
...
Sentei no chão, escorada na parede do corredor vazio. Dava pra ouvir as vozes dos alunos no corredor ao lado. Se todo mundo gostasse de química, eu teria uma companhia lá, ao menos. Os alunos só andavam naquele corredor quando o professor deixava notas em jogo. Pontos e formulas-não-mágicas.
Apertei os olhos e abracei meu corpo. Joguei a cabeça pra trás e esperei algo acontecer comigo. Quem sabe um tipo de anjo pudesse atravessar o teto e lançar uma consoladora brisa em meu rosto. Daí poderia me estender a mão e levar-me da minha própria vida.
Por muito e muito tempo.
...
Foi só a dor que apareceu. Uma fisgada violenta e raivosa nos músculos do punho.
Abri os olhos de impulso e afastei a manga do casaco, olhando a marca preta no pulso queimar. Parecia não haver ar em meus pulmões, então comecei a respirar tanto quanto pudesse.
E eu quase não pude muito.
A continuação da fisgada se estendeu por cerca de dez segundos, quando finalmente foi parando.
...
Havia sido a fisgada mais dolorosa que já sentira.
E eu desejava nunca mais ser tocada por ela. Nunca mais.
...
...
Olhei a marca...
Agora eu podia ver... Era um estranho desenho geométrico, que mesmo cheio de lados, parecia muito uma cruz...
Passei o dedo sobre ela, senti minha pele áspera e meio quebradiça.
Algo terrível estava prestes a acontecer. Era realmente como se algum cerco estivesse se fechando, comigo dentro, ainda por cima!
Eu estava péssima, me sentia tonta e enjoada. Passei a mão na barriga, era como se algo estivesse comendo minhas vísceras.
Algo queria retornar à boca.
...
Levantei-me correndo e voltei para o corredor dos alunos, havia acabado de tocar a campainha que findava com nosso intervalo.
Ia pra sala, mas estava passando muito mal!
Meu estômago se revirava e se contorcia.
...
Acabei escapando para o banheiro feminino.
...
Lá estava vazio. E por mais consolador que pudesse parecer, também não havia ninguém chorando. Duas meninas saíram rindo alto lá de dentro. Olharam torto pra mim e se foram.
Entrei empurrando com rapidez a porta do banheiro. Era como se estivessem perfurando o meu fígado com uma faca! Doía muito e me tirava o fôlego.
...
O burburinho dos alunos havia cessado no pátio, só o que ouvi foram os meus pequenos gemidos de dor.
...
Tranquei-me e enfim tentei expulsar do meu estômago o que estava me afetando.
...
O que eu havia comido de tão péssimo?
...
Não comido, mas talvez tomado... Um salobro copo de suco de laranja.
...
Vomitei tudo.
Tudo mesmo.
Sentira como se um bolo de espinhos tivesse rasgado minha garganta.
...
Quando abri os olhos e olhei para o que havia regurgitado, tomei um enorme susto!
Era um tipo de massa preta, com umas coisas avermelhadas.
Quase caí pra trás!
Eu mal havia comido naqueles dias, como podia ter colocado aquilo pra fora??
Mal consegui respirar, era como se algo estivesse prendendo o meu ar.
...
Escorei-me na parede com os olhos arregalados. Por um momento aterrador, pensei:
“Meu pai havia tentando me envenenar?”
O suco.
Sim, O Suco! Só podia ter sido ele, claro!
Talvez o gosto horrível se devesse às verdadeiras intenções diluídas nele...
...
Tapei a boca e tentei conter o choro.
...
O que eu estava pensando? Não, eu só poderia estar ficando mesmo muito louca! Meu pai, meu próprio pai ter tentado me envenenar?
Não. Era cruel demais...
Ele teria a coragem de fazer isso com a própria filha?
...
Ouvi algumas vozes entrarem no banheiro. Sem me demorar mais, enxuguei as lágrimas quentes que escorriam sobre o rosto e abri suavemente a porta da cabina onde eu estava. Ajeitei melhor o meu casaco e olhei para frente.
...
Estavam no canto do banheiro, o homem e a mulher que mais cedo haviam interrompido o terceiro tempo de aula. Não sei bem o que falavam, eu ainda estava meio atônita com o mundo e com as pessoas. Abracei meu corpo e olhei melhor para o cara alto e claro, ainda recolhida no vão da porta da cabina. Acho que nenhum dos dois me viu.
Tive receio em manifestar minha presença, esperaria que eles fossem embora e logo em seguida, sairia também.
Mas outra vez, algo estranho aconteceu...
...
Oscilava entre erguer a cabeça e esperar o momento de ir; Olhei mais as figuras desconhecidas. Sem muito a esperar.
Foi super estranho e rápido flagrar o homem tentar puxar a pele abaixo de seu pescoço, como se quisesse tirar do rosto, um tipo de máscara.
Assustei-me a ponto de não permanecer em sigilo.
Abracei melhor o corpo e corri para fora, quebrando o estranho diálogo entres os estranhos, passando desgovernadamente por uma fenda pequena que sobrara da porta.
O homem ainda me chamou, mas eu corri o mais rápido que pude para o segundo andar.
...
O quê? Agora eu veria alucinações em pessoas desconhecidas também?
Meu deus, como eu poderia terminar com aquela tortura?
...
Subi as escadas, de volta ao corredor dos alunos.
Passei pelos vidros da sala de vídeo, pude ver meu rosto sem cor e abatido.
Era assim que o medo e o pânico me deixavam?
Eu tentaria não desmaiar...
Tentaria.
...
Antes de chegar à classe, Vi Justin.
...
Ele e eu andávamos no mesmo passo até a porta quinze, da primeira turma do segundo ano. Vínhamos de direções opostas, mas íamos de encontro um ao outro. Involuntariamente. Um garoto de dezessete anos e uma menina de dezesseis. Ele me olhava, eu desviava os olhos e tentava caminhar sem cambalear.
Com um cavalheirismo estranho, ele ergueu a mão para girar a maçaneta e abriu um espaço para que eu entrasse primeiro. Ia fazer isso, mas era tão difícil me manter lúcida!
Acabei perdendo o equilíbrio por uma vertigem.

Se Justin não estivesse tão perto, com certeza eu me estatelaria no chão.
Ele me segurou e me levou para um banco perto da escada.
Fugiria dele se eu conseguisse me mexer direito, mas naquela hora, eu não podia fazer exatamente nada.
...
- O que foi, você tá bem? – Justin falava bem perto ao meu rosto. Lembro de sentir um cheiro agradável de menta.
- Claro que eu tô! – grunhi baixinho – Me deixa levantar, sai de cima de mim!
Justin se moveu quase nada para trás.
- Vou te levar pra enfermaria.
Ele não perguntou, decretou, praticamente.
- Não, não! – fiz o maior esforço pra me erguer – Eu vou embora, vou pra casa!
- Amy... – ele fez cara de zangado – Por que você é tão teimosa?!
- Ah me esquece! – levantei e sai. Justin não fez nada, ficou só me olhando, parado.
Não sei de onde tirei força pra caminhar.
Achei realmente incrível!
...
Desceria e pularia o muro. Ia embora daquela droga! No entanto, lembrei que minha mochila estava dentro da sala, e que lá também estava a professora.
- Só faltava essa... – parei no meio da escada.
Justin perguntou:
- Podemos nos ajudar?
...
...
...
O plano era este:
Justin apareceria sorrateiramente no vidro da porta da sala e faria sinal a um amigo seu.
Este amigo pediria a professora para ir ao banheiro, e encontrando Justin lá fora, seria informado de que teria que tirar a professora de dentro da sala por alguns minutos.
Depois que o amigo enrolasse a professora e a fizesse sair, ele nos daria nossas coisas.
*Riscos: algum dedo-duro poderia acabar com nossa fuga e nos fazer autografar o livro preto da diretora.
*Ganhos: nós estaríamos livres dos dois últimos tempos de aula.
Bem, era tudo.
Claro que eu poderia ir falar com a pedagoga e contar que eu havia passado mal e que precisava ir para casa, mas aí seria bem mais provável depois ela ligar para o consultório do cardiologista e dizer que sua filha havia se sentido mal durante as aulas.
Bem... aí imaginem o que ele faria comigo...
...
Imaginou?
Não, não. Dessa vez haveria lanhos de sangue.
Com certeza.
...
Contudo, acabei por aceitar o plano de Justin.
Àquela altura do campeonato, não ligávamos para regra nenhuma.
Eu, principalmente. Não as regras da escola.
...
Só queria ir embora e morrer num lugar sossegado.
Justin? Não sei por que ele queria fazer aquilo...
Não imagino por que.
Seria somente a vontade de não assistir aula?
...
Não sei.
...
O amigo dele se chamava Carlos. Era pequeno e ligeirinho. Agraciado com dois olhos claros e sorridentes. Deve ter se assustado quando me viu olhar para ele, com minha cara de marfim velho. Eu nem me importei.
Carlos aceitou participar do plano com muito gosto. Entrou rápido na sala e chamou a professora no canto.
Corremos para o corredor do laboratório e esperamos cerca de dois minutos.
Nesse intervalo de tempo eu imaginava a expressão da professora, com a mentira de que a haviam chamado na sala da pedagoga, por conta das notas não entregues do bimestre anterior.
Ela deveria estar inquieta.
...
Fiquei bem encostada na parede, enquanto Justin espiava calado uma boa ocasião de fugir.
...
Ficou silêncio por um longo tempo, até ouvi-o grunhir.
- Vamos agora!
Ele me puxou rápido, quase perdi o equilíbrio outra vez. Não fora indelicado, só rápido.
Carlos apareceu na porta e deu-nos nossas mochilas.
Depois ele sorriu, maliciosamente, dando uma piscadela para Justin, que a ignorou descaradamente.
Só disse um leve ‘obrigado, cara’.
...
Nos esgueiramos corredor adentro, enquanto eu tentava manter os olhos abertos e os passos coordenados. Justin sabia que a qualquer momento eu podia perder totalmente os sentidos.
Estava perto o suficiente para ser prestativo...
...
Estávamos no térreo.
...
Após os olhos de espreita e algumas certezas remotas se confirmarem, ganhamos o pátio e logo já estávamos perto da quadra poliesportiva. Depois foi mais fácil, passamos pelos arbustos e surgimos na frente do muro.
...
Soltei meu braço da mão de Justin e caminhei meio lenta até algo sólido. Encostei-me na parede e respirei fundo. Exausta.
Justin deveria estar vendo como pularia a grade, depois de todos aqueles novos e brilhosos arames farpados que se entranhavam nela.
Confesso ter desistido antes de rasgar o primeiro pedaço da minha pele.
Sem mais ferimentos, por favor...
...
Obs: A diretora era bem esperta.
...
Fui escorregando as costas na parede, até perceber que estava sentada, com a mochila sobre o colo. Buscava formas de me sentir bem mais viva, sem aquele peso morto dentro do peito. Todas aquelas coisas estavam afetando a minha saúde. Minha vida agora era uma frágil linha de seda, prestes a ser severamente cortada, separada.
Rompida.
...
Era isso. E depois a força estranha que transformava meu pai, no meu maior e mais vivo inimigo.
...
Justin desistiu também, cinco minutos depois.
...
Sentou-se ao meu lado. Em silêncio. Redimido e moroso silêncio.
...
Achei que ele talvez não quisesse mais oferecer ajudar alguma, nem mais continuar com aquela encenação de quinta. Foi um calmo e quase passivo suspiro de alívio. Enfim, agora eu estava de mãos abanando, afundando sozinha, sem ninguém à tira colo.
...
Foi estranha uma sensação ruim passar por mim nessa hora...
Como se eu realmente me importasse com aquilo.
...
Justin olhava as mãos.
...
A sensação de perda. Depois a fisgada maldita em meu pulso.
Cruzei os braços e contorci o rosto.
Devia aceitar terminar tudo daquele jeito?
Como eu era ridícula, perderia sem nem tentar! Mas como eu tentaria lutar contra aquelas coisas? O que eu poderia fazer por mim e por meu pai?
...
Ah, e eu também havia rejeitado a ajuda. Ou a suposta ajuda.
Eu nunca teria certeza. Nunca saberia se era mesmo uma mentira.
...
Arrependimento. Vontade de estapear eu mesma o meu rosto. Bater a cabeça na parede.
Descruzei os braços e os deixei perto do corpo.
...
- A segunda fuga frustrada. – Justin balbuciou.
- É...
- Mas não me importo de ficar aqui até as onze e quarenta da manhã...
Eu pensei que também não me importava.
- É...
Ele riu e olhou para mim.
- Você só sabe dizer isso...?
Sorri.
- É.
Justin não virou o rosto. Ficou olhando pra mim, estranho e lentamente. Foi deslizando o olhar até a manga do meu casaco, pedindo um tipo de permissão para tocá-la.
Eu não me movi ou travei.
Depois ele ergueu as mãos e foi afastando com leveza, a manga do casaco da minha pele. Girou meu punho e olhou a marca...
Olhamos ao mesmo tempo, pensando coisas não iguais, mas bem parecidas.
Tinha certeza disso.
Ele tentava disfarçar a inquietude daquilo, mas era difícil, até mesmo para aquela sua cara cínica.
- Está quase completo...
Quis perguntar por que, mas não disse absolutamente nada. Eu não conseguia.
Justin passou o dedo sobre o desenho.
Eu devia falar um monte de coisas, mas era como se estivessem trancadas em alguma parte da minha boca. Deveria haver uma chave para abrir a porta e deixá-las respirar um pouco.
Outra palavra, quem sabe...?
- Essa talvez seja sua última chance...
Última chance?
Estremeci.
- Última chance de quê...?
Ele demorou a responder. Tentava manter um contato visual fixo comigo, achar a ligação certa.
- De salvar a sua vida, Amy.
...
Era aquilo. Era a chave. Eu realmente queria salvar minha vida?
...
Meu rosto entortou-se numa interrogação por quase um minuto.
Diria sim. Sim.
Eu deveria dizer sim.
Justin buscou os meus olhos.
Sua voz mansa me estendeu a mão.
- Comece me contando tudo... Desde o início.
...
A ajuda. Eu enfim aceitaria a ajuda. Sem tentar lembrar toda a hora que ela talvez pudesse me apunhalar pelas costas, ou me pregar uma ruidosa peça.
Era minha única saída, a única voz inteligível entre os meus gritos.
...
Olhei para Justin e decidi que contaria.
...
Respirei fundo.
Tudo começou no dia do meu aniversário...
...
...
...